http://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2017/02/1861875-no-brasil-ninguem-e-branco-diz-anitta-sobre-apropriacao-cultural.shtml
Achei essa notícia especialmente interessante, pois permite abordar duas questões ótimas para discussão no aspecto do que se entende por "cultura", além de revelar uma face verdadeiramente macabra de nossas Políticas Públicas de Cultura.
A primeira questão que se apresenta é o mais novo mimimi dos "movimentos sociais": a "apropriação cultural". Isso levou a dita cantora a afirmar que "no Brasil, ninguém é branco". Mas ela só não disse (ou preferiu não dizer, fato totalmente compreensível) que, igualmente, no Brasil ninguém é preto. O Brasil é um dos países onde mais houve miscigenação racial - e, obviamente, "miscigenação cultural". O intercâmbio entre várias culturas é nossa característica mais forte. Tome como referência qualquer gênero associado à cultura "afro-brasileira": samba, maracatu, afoxé, carimbó que é perceptível tanto a influência dos descendentes da África subsaariana (no Brasil, fala-se de "África" como se fosse uma "coisa" só; a África é um continente riquíssimo, que inclui tanto a África do Sul quanto o Egito, o Marrocos quanto o Moçambique; e a África quase não tem negros na região saariana), dos indígenas e dos "brancos" (portugueses, espanhóis, italianos, alemães, poloneses, árabes, libaneses, japoneses e chineses, entre os mais presentes). A essa altura do campeonato, falar em "apropriação cultural" é simplesmente ridículo. É infinitamente mais sensato pensar em intercâmbio cultural: as culturas dialogam, se cruzam e se fundem, independentemente de etnia, território ou época. Se for pra processar Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandes, Villa-Lobos e os demais compositores por "apropriação" da cultura afro-brasileira, processem também Chiquinha Gonzaga, Donga, Pixinguinha e Giberto Gil por "apropriação" da cultura europeia - que eles também tomaram de empréstimo.
A segunda questão diz respeito ao assunto que tratamos exaustivamente na "primeira fase" desse blog: as Políticas Públicas de Cultura. Percebam a seguinte frase:
É a segunda vez que a cantora carioca desfila na Bahia. Desta vez, numa festa de graça para o público, contratada pelo governo do Estado por estimados R$ 160 mil.Observem bem a "mensagem subliminar" que aparece nesse breve texto: a imprensa e, provavelmente, a grande maioria do "público" tem a noção de que essa festa foi gratuita - e, naturalmente, "democrática", pois todos poderiam ir sem ter de pagar ingressos em um recinto fechado. Porém, a cantora foi contratada com recursos públicos - "estimados" em R$ 160 mil, ou seja: além do próprio povo ter subsidiado esse show "gratuito" através de impostos, sequer há uma política de transparência pública, o que nos obriga a "estimar" os custos para o já escasso dinheiro da Cultura - o setor que certamente pagou esse "desfile". Como de costume, esses "shows" de ano novo, carnaval e festejos são organizados por uma comissão interna da Cultura, que decide quais artistas devem ir ou não - ao invés de abrir um Edital para que todos os artistas de fato tenham ao menos uma oportunidade igualitária de concorrer. E assim tem sido caracterizada a gestão da Cultura nos Estados brasileiros: a Bahia, nesse caso, contratou um artista de fora por um alto valor, ao invés de apoiar artistas independentes de seu Estado ou não - e que, inclusive, fariam shows artisticamente tão bons quanto o dessa cantora, por um valor bem mais baixo. Será que só a "fama" justificaria isso?
A parte posterior dessa reportagem mostra como essa "indústria" dos artistas "famosos" não é fruto apenas uma gestão "mal organizada" - e, aparentemente, inocente - da Cultura. Há interesses BRUTAIS na jogada. Junto com esses artistas famosos e o público que pensa estar participando de uma festa "gratuita", as grandes empresas e os
Na frente e ao lado do trio, um grande logotipo do banco Bradesco. O desfile é bancado pelo governo do Estado, com recursos de patrocinadores, incluindo o Banco do Brasil, que pagou R$ 500 mil. Os recursos captados pelo governo, de valor não divulgado, pagarão o cachê de Ivete e de outros quatro artistas: Anitta, Saulo, Carlinhos Brown e Claudia Leitte. Outros R$ 3 milhões sairão do caixa estadual para pagar os outros cem artistas que participam do Carnaval. Do lado da prefeitura, a Ambev foi a principal patrocinadora da festa. Depois de três anos tentando furar o bloqueio que deu exclusividade às cervejas Schin e Itaipava, a gigante das bebidas se rendeu: pagou R$ 30 milhões para ter a Skol como cerveja exclusiva nas festas. Enquanto isso, no circuito do Campo Grande, pilhas de latas da cerveja Schin abasteciam o camarote do governador Rui Costa (PT). Em seu primeiro Carnaval como prefeito aliado do governo federal, ACM Neto (DEM) marcou presença no camarote da Caixa Econômica, que tradicionalmente era reduto dos petistas nos governos Lula e Dilma Rousseff. Na hora em que Ivete desfilava na Barra, o prefeito e governador, adversários políticos que devem se enfrentar na disputa pelo governo da Bahia no próximo ano, foram ao Campo Grande e acompanharam o desfile do pagodeiro Léo Santana. A disputa dos dois pelos holofotes foi grande. ACM Neto dizia que a Prefeitura de Salvador é que organiza o Carnaval: "Quem quiser fazer este trabalho pode se candidatar ao cargo, em 2020".Então, meus caros, essa é a verdadeira face das Políticas Públicas de Cultura no Brasil. Conselhos de Cultura, eventos "populares" e outras frases maravilhosas e sedutoras que vem dos mais diversos tipos de interessados nesse grande esquema - e que inclui também alguns acadêmicos - é, na verdade, uma grande falácia. Os artistas independentes, que tem de ralar pra fazer um nome local e trabalhar em vários ramos pra poder se manter, vão continuar nessa situação de penúria. Enquanto isso, empresários gananciosos, políticos que só pensam em si mesmos, acadêmicos estudiosos dessa "maravilhosa" diversidade cultural e o "grande público" estão todos mui felizes.
Enquanto nós, pobres artistas "comuns"...
Acabo por aqui. Estou com vontade de vomitar.
Eu compartilho desse mesmo pensamento, é, se me permite, vou além,com a dissolução da pangeia muitas pessoas dos mais diversos cantos ficaram ilhadas e deram origem a novas culturas, novas etnias, mas conservaram aquilo que lhes era peculiar, eis talvez um primeiro ponto a se pensar, lógico que sem fundamentação essa não seria uma afirmação científica, mas daria bons momentos de elucubração. O segundo ponto a se pensar é que distante do seu lugar, as pessoas tendem a adaptar o que possuem para continuar a cultivar suas tradições, seus usos e costumes, sua diversão, etc. Um terceiro ponto, que nada tem a ver com apropriação, mas com mimetismo puro, um tipo de evolução convergente em que ao reproduzir um ritmo novo que pareceu agradável, ao longo do tempo ele se incorporou àquela sociedade, e passou a ser vista como autóctone( exemplo, a presença do modalismo na música nordestina),sem nenhum prejuízo a nenhuma das partes. Eu não consigo ver e ouvir o Bumba-meu-boi sem visualizar elementos árabes, africanos, misturados a elementos da tradição musical europeia em perfeita harmonia. São células rítmicas, instrumentos, elementos vindos das mais diversas tradições orais se mesclando com elementos tonais e modais, criando algo novo, numa sociedade nova.Poderiamos aqui enumerar N elementos convergentes, nos mais diversos cantos do mundo, nos mais distintos gêneros musicais, mas ainda ficaríamos aquém de entender o fenômeno. Apropriação, que palavra forte para descrever um fenômeno humano tão singular e até singelo em alguns aspectos, é algo que nos remete a Raymond Williams e se materialismo cultural, dando a impressão de furto, de algo que foi tomado a força para criar e validar novos valores e paradigmas culturais.
ResponderExcluirConcordo plenamente com tuas palavras, prof. Ivan. Sinto que existe um movimento no país querendo "ideologizar" ou "politizar" tudo da pior forma, procurando conflitos onde não há e más intenções em qualquer discurso. Procuram logo saber quem é "de esquerda" ou "de direita"... do ponto de vista de quem "faz cultura", todos que eu conheço querem é trabalhar e gostam muito do que fazem. Ninguém está preocupado em "se apropriar" de nada.
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