Um dia após terminar a participação no
VIII Seminário Internacional de Políticas Culturais, realizado na Casa Rui Barbosa no Rio de Janeiro, recebi a informação do bibliotecário Jailton Lira de que a
Secretaria de Cultura e Turismo (SECTUR) do governo do Maranhão havia publicado editais para realização de eventos culturais e artísticos.
Essa notícia foi uma grande surpresa, tendo em vista que desde a criação do Departamento de Cultura do Estado em 1953 - momento que marca o início da intervenção do governo em assuntos ligados a esse setor no Maranhão -
nunca havia sido publicado um único edital que permitisse a participação de quaisquer "fazedores de cultura" (termo utilizado no supracitado Seminário) independentemente de sua condição social ou proposta estética, conforme os registros disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e no portal da SECTUR.
Nos últimos anos, a única entidade que realmente tem empreendido iniciativas democráticas para o setor de Cultura no Maranhão, em nível estadual, tem sido a
Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão - a FAPEMA. Houve a publicação de editais para bandas de música (formação que em Minas Gerais é contemplada através de um Programa - "Bandas de Minas"), formação de orquestra através de estudantes, apoio a projetos culturais e artísticos em escolas e prêmios para mestres da cultura popular. Esse último, inclusive, deveria ser uma obrigação da SECTUR, já que a única política cultural do Estado desde a década de 1970 - instituída por Domingos Vieira Filho - se baseia na espetacularização e exploração turística dos folguedos maranhenses e, naturalmente, de seus mestres, cantadores e "brincantes".
Entretanto, o setor de Música está em situação "menos pior" do que dos colegas de Teatro, Artes Visuais, Dança, Literatura (bibliotecas e acervos). A área de Dança, por exemplo, sequer tem um curso superior no Estado.
Vamos, então, analisar mais detalhadamente esses editais recém-publicados da SECTUR, para conferir se eles de fato cumprem o papel de "democratização" ao qual essa secretaria se propõe.
EDITAIS
Foram publicados quatro editais, cujas informações básicas são apresentadas em seguida:
1) Edital 03/2017, "Praça do Reggae": destinado a apoiar apresentações, oficinas e feiras nesse espaço cultural (fica na rua da Estrela) e ligadas a esse gênero musical em todas as quintas-feiras até 14 de dezembro de 2017. Inscrições até o dia 07 de julho. Valores de apoio aos participantes: R$ 500,00 para DJs, R$ 3.000,00 para bandas/shows/radiolas e R$ 2.000,00 para "outras expressões culturais".
2) Edital 04/2017, "Concha Acústica": destinado à realização de apresentações musicais, teatrais e circenses nesse espaço (fica na Lagoa da Jansen) desde que sejam voltadas ao público infantil, durante todos os sábados até o dia 16 de dezembro de 2017. Inscrições até 21 de junho. Valores de apoio aos participantes: R$ 2.000,00 para teatros/circo e R$ 3.000,00 para bandas/shows.
3) Edital 05/2017, "Quarta do Tambor": voltado para a ocupação da Praça da Faustina com apresentações de tambor-de-crioula, durante todas as quartas-feiras até o dia 13 de dezembro de 2017. Inscrições até 21 de junho. Valores de apoio aos participantes: R$ 1.500,00 para cada grupo.
4) Edital 06/2017, "Casa do Maranhão": voltado à realização de apresentações de grupos de bumba-meu-boi e blocos "tradicionais" nesse espaço cultural ao longo do ano, até 16 de dezembro de 2017. Inscrições até o dia 21 de junho. Valores de apoio aos participantes: R$ 6.000,00 para os grupos de bumba-meu-boi e R$ 4.000,00 para blocos tradicionais carnavalescos.
5) Edital 07/2017, "Espigão Costeiro": destina-se à realização de apresentações musicais/shows e performances culturais aos domingos, até dia 17 de dezembro de 2017. Inscrições até o dia 21 de junho. Valores de apoio aos participantes: R$ 1.000,00 para artistas solo e R$ 3.000,00 para bandas/shows.
ANÁLISE
1) Conquistas
A iniciativa de "ocupar" os espaços culturais do Estado é uma iniciativa louvável.
No estudo que defendi no Seminário informado anteriormente, dei o exemplo do Programa de Gratuidade de Pautas para os Espaços Culturais da SECULT, da Secretaria de Cultura da Bahia (SECULT/BA). Além disso, os espaços devem ser adequados às propostas culturais a serem realizadas - fato que é percebido nestes editais da SECTUR. Entretanto, cabe destacar que seria interessante a democratização de outros espaços, a exemplo dos teatros Arthur Azevedo, João do Vale, dos museus e dos Centros de Cultura Popular e de Criatividade. Assim, outros tipos de práticas culturais - da cultura "erudita" (que também deve ter o mesmo direito de existir!), de exposições de arte, intervenções teatrais, mostras de filmes e espaços de leitura, entre tantas outras atividades possíveis.
Outro aspecto positivo é a intenção da SECTUR em promover uma
agenda cultural. Entende-se, assim, que os artistas, mestres da cultura popular, cantadores, brincantes, produtores culturais, técnicos de áudio, iluminação e outros profissionais do setor da Cultura precisam de atividades regulares, favorecendo a sua profissionalização. A concepção que era adotada até então, de apoiar apresentações somente em datas festivas, além de não oferecer acesso cultural regular tanto à população quanto atividades para quem "faz cultura", dissemina o péssimo conceito de Cultura como "entretenimento". Isso precisa urgentemente ser desconstruído, e parabéns a SECTUR por prover uma iniciativa que também é valiosa em termos de ideologia.
O terceiro ponto positivo dos editais - e o mais evidente - é permitir que
qualquer proponente possa fazer parte da agenda cultural. Esse era um problema gravíssimo especialmente nos festejos juninos até 2014: uma equipe interna da então Secretaria de Cultura escolhia a dedo os grupos que poderiam participar. Nem é necessário dizer que havia determinados grupos privilegiados nesse processo. Mais uma vez, é louvável a iniciativa da SECTUR em publicar editais - um elemento que, apesar de ter os seus problemas, é um instrumento que contribuiu efetivamente para o exercício da democracia.
2) Considerações
Naturalmente, como todo processo de implementação de uma nova política pública, avaliações com vistas a melhorias devem ser feitas. O primeiro aspecto que chama a atenção é a delimitação estética de quem pode atuar conforme o tipo de atividade cultural. É certo que os espaços devem ser adequados aos tipos de evento, porém, ainda há uma forte delimitação que privilegia determinados tipos de prática cultural. Aqui, percebe-se a continuação do conceito estabelecido do que seria "cultura maranhense", instituído pelo Estado desde a gestão de Domingos Vieira Filho, com o apoio de José Sarney. O público precisa saber que o Maranhão foi um centro cultural cosmopolita durante o século XIX: o Teatro Arthur Azevedo possuía uma média de 3 récitas de óperas e operetas por semana; havia
soirées (encontros noturnos de música, récita de poesias e exposição de quadros), bailes de máscaras, festejos religiosos, e serestas, por onde circulavam tanto artistas estrangeiros quanto locais e pessoas de todas as classes sociais, em uma época onde os conceitos de "erudito" e "popular" se fundiam. O tenor, organista e professor de música Vicente Ferrer de Lyra (ca.1796-1857), por exemplo, escreveu motetos para serem interpretados pelo coro não da Capela Cistina ou de Notre Dame, e sim da Catedral do Maranhão! Por isso, essa produção deve possuir a mesma legitimidade de "maranhense" quanto o bumba-meu-boi, por exemplo - que, inclusive, surgiu na Bahia ou em Pernambuco, e não no Maranhão. Desconstruir esse conceito fechado de "cultura maranhense" deve ser uma missão a ser assumida, com vistas a instituir uma nova política cultural para o Maranhão.
Como consequência da delimitação estética, vários grupos culturais e artísticos não tem sequer chance de se escrever nos editais - com exceção do Edital n. 07/2017, do "Espigão Costeiro", que não define características estéticas de atuação. Por esse mesmo motivo, é provável que esse edital se torne um "guarda-chuva", onde irão se inscrever, por exemplo: bandas de fanfarra ou marciais, grupos de repentistas e violeiros, grupos de espetáculo teatral, grupos de dança popular, contemporânea ou tradicional, bandas de rock independente, bandas de jazz, blues e bossa nova, récitas de poesias... por esse motivo, é preciso reconhecer a real pluralidade da "cultura maranhense". Administrativamente, isso implica em buscar formas de não delimitar a proposta estética nos editais - a exemplo do que fez a FAPEMA no
Edital 018/2017 - "Com Ciência Cultural".
Outra questão diz respeito às áreas das Artes contempladas. Mesmo fazendo parte da área de Música, reconheço que os editais publicados não oferecem a mesma abertura para essa área frente a Teatro, Artes Visuais, Dança, Literatura ou Audiovisual. Quem trabalha com Teatro, por exemplo, teria de adaptar seu espetáculo para o público infantil caso quisesse ter acesso por meio do Edital 04/2017, ou então tentar o edital "guarda-chuva" (07/2017). É importante ter isso em mente da próxima vez.
Com relação aos documentos solicitados, acredito que a SECTUR exagerou. A apresentação de um portfolio é válida, e serve como base para a avaliação pelas comissões dos editais. Agora a "Comprovação de consagração do artista pela crítica especializada ou pela opinião pública, conforme preconiza o artigo 25, inciso III da Lei Federal nº 8.666/1993", entre outros, é um tanto bizarra, principalmente impede a participação de artistas e bandas que pretendem entrar na agenda cultural. Pergunto: os artistas convidados pela SECTUR para os eventos de Revéillon, a
cachets altíssimos, também são obrigados a apresentar esses documentos? Com certeza não. O envolvimento de "empresários", conforme solicitado em vários ítens, obriga os grupos a serem gerenciados por um administrador, e isso não existe no caso de bandas e artistas independentes - sendo um potencial fator de exclusão para esses grupos. Curiosamente, o pedido de documentos também é excessivo para os grupos tradicionais, como os de tambor-de-crioula, bumba-meu-boi e blocos tradicionais. A conclusão é de que a documentação exigida não condiz com a proposta de "democratização" das ações culturais.
Por fim, é necessário apontar que essa pequena mudança na política cultural da SECTUR ainda está longe de atingir os objetivos dispostos no
Plano Estadual de Cultura, o documento mais importante do setor em nível estadual - e que revela de forma mais clara a real amplitude da "cultura maranhense" em todo o Estado. Com vigência entre 2015 e 2025, uma ação importantíssima que ele prevê é a
descentralização das ações culturais. As cidades e povoados do interior também precisam ter o mesmo direito de acesso a atividades culturais, tanto a população quanto os "fazedores de cultura". A política da SECTUR continua focando em São Luís, ignorando completamente o que acontece no Sul do Maranhão. Houve iniciativas anteriores com vistas a atenuar esse problema, como o "Projeto EMEM Itinerante", que levou professores da Escola de Música do Estado do Maranhão (EMEM) a treze municípios do interior entre 2013 e 2014, realizando intercâmbio e ações pedagógicas.
FINALIZAÇÃO
Os avanços da SECTUR devem ser reconhecidos, principalmente porque as políticas culturais do Maranhão se basearam por cerca de 50 anos na espetacularização turística da cultura afro-brasileira - onde quem menos se beneficiou foram justamente os "fazedores de cultura". Tratei sobre a história das políticas culturais maranhenses
nesse artigo, para quem possa se interessar. É interessante, agora, ir tateando as possíveis mudanças, sempre refletindo sobre os impactos através do diálogo com a sociedade. A perspectiva é de que o Maranhão possa finalmente superar aos poucos o seu atraso histórico na Cultura e nas Artes.