domingo, 4 de junho de 2017

Crise na OSB ou crise na música "erudita"?

Prezados,

Diante da atual - e conhecida - crise em que está o Estado do Rio de Janeiro, devido única e exclusivamente a uma administração pública irresponsável e corrupta (na qual acredito que pena de morte seria pouco...), a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) também entrou em uma profunda estagnação. Há sete meses sem receber salários - um absurdo para qualquer profissão que existe, não apenas para "médicos, engenheiros e advogados" - os músicos tem se desdobrado para manter sua renda, tocando em eventos, projetos sociais e outras oportunidades que surgem.

Acredito que nesses momentos de crise, é fundamental refletirmos sobre algumas questões que nunca são ditas - especialmente nos tempos de "vacas gordas", onde tudo parece estar bem.

E o que acontecia com a OSB, em tempos de "vacas gordas"?

Não sei se vocês se lembram da administração de Roberto Minczuk, na busca pela "qualidade" ou a "excelência" absoluta pela "perfeição" na performance da Orquestra, que passa por cima de todos os valores humanos e sociais e tratam os músicos como se fossem "máquinas". O ponto de tensão máxima desse contexto foi a carta aberta de Marlos Nobre em 2011 a este regente, disponível adiante:
CARTA ABERTA PARA ROBERTO MINCZUK
Roberto, estou angustiado ao escrever esta carta, ao ver um regente como você envolvido nesta situação constrangedora e triste.
Você, Roberto, não teve ninguém perto de você para lhe abrir os olhos ante a imensa tolice que foi toda esta situação criada na Orquestra Sinfônica Brasileira?
Eu lhe escrevo como um Maestro e compositor que conheceu um Roberto ainda nos seus 10 a 12 anos de idade, participando do Concurso de Jovens Instrumentistas que organizei em 1974 nos “Concertos para a Juventude” na Rede Globo e Radio MEC. Nele, você se destacou com jovem talento, promissor o bastante para que eu lhe desse de presente uma trompa novinha em folha (a sua, na época era impraticável). Lembro anos depois, no seu concerto de estréia como regente da OSB no Rio, ter sido procurado pelo seu velho e honrado pai, com lágrimas nos olhos, me dizendo que aquela trompa estava guardada em um invólucro de vidro, emoldurando a sala de estar da sua casa paterna. Foi extremamente comovente então, ver seu pai visivelmente feliz vendo sua estréia como regente titular da grande e prestigiosa Orquestra Sinfônica Brasileira. Entre outras obras você então dirigiu a Sinfonia “Heróica” de Beethoven. E a nossa OSB respondeu à altura aos seus gestos, dando na ocasião uma intepretação memorável da obra. Estes mesmos músicos que agora sofrem com a implacável perseguição e ira absolutamente incompreensíveis de você, como diretor da OSB.

Pois bem, Roberto, assim como seu pai, um velho e honrado músico, eu aprendi que não é possível fazer música senão com o espírito leve, aberto, ligado apenas no dever maior de intérprete que é o de revelar a grande mensagem de amor, compreensão universal e respeito mútuo que emanam de toda grande obra musical. Não é possível aos músicos renderem o máximo de suas qualidades,  frente à arrogância, à falta de respeito, à imposição, à desumanidade, à inépcia humana de quem está a lhes impor e não a lhes dar condições de criar a maravilhosa mensagem da Música.

Roberto, aquele menino a quem dei uma trompa hoje é motivo da maior decepção que jamais tive em minha vida. Uma decepção profunda e irreversível. Você, e somente você, é o responsável por uma situação inédita na música sinfônica do Brasil, ao submeter uma orquestra inteira a um vexame público demitindo com requintes de crueldade e desrespeito pelo passado deles, mais da metade de seus componentes através de pretextos os mais inaceitáveis possíveis. Nem o pretexto de maior qualidade musical seriam justificação para um tal elevado grau de agressividade humana, artística e pessoal de que vitimas nossos músicos da OSB. Você não respeita idade, serviços prestados, idealismo nem humanidade. Todos estes valores essenciais nas relações humanas e artísticas vão para o ar em suas mãos, neste momento triste da história da música no Brasil.

A destruição dos ideais que sempre foram a grande força da Orquestra Sinfônica Brasileira, Roberto, você não conseguirá. Aliás vejo com tristeza que você está conseguindo se destruir de uma maneira tão perfeita, tão definitiva, tão veemente como jamais o maior inimigo seu seria capaz, nem teria tal grau de imaginação destrutiva.

Sua auto-destruição me choca pois me parece que você, Roberto, entrou em tal processo negativo sem volta nem retorno, pois sequer se dá conta que, não só no Brasil, mas em qualquer país do mundo onde você entrar no palco, para dirigir uma orquestra, terá como resposta o desprezo e a desaprovação do público e do mundo musical.
Como compositor não desejo que nenhuma obra minha seja jamais executada por este arremedo de Orquestra Sinfônica (que me recuso a chamar de OSB pois esta foi destruída irresponsavelmente por você), dirigida por você.

Não autorizo nenhuma obra minha tocada senão pela verdadeira ORQUESTRA SINFÔNICA BRASILEIRA que aprendemos a amar, a reverenciar e a proteger, de desmandos de eventuais passageiros da desesperança, da agressão moral e do desrespeito.
MARLOS NOBRE

Pois bem. Agora, os "sobreviventes" da OSB estão sem receber salários há sete meses. Depois de tanto trabalho árduo, sob uma situação de tensão total mesmo no periódo de "vacas gordas", o que esse maestro teria a dizer agora?

Aqui, entra a minha reflexão.

O mercado da música "erudita" não difere em nada do mercado da música "popular". Ele também é cruel, atropela questões humanas e seleciona os indivíduos mais "aptos" para entrar na mídia comercial. No caso da música "erudita", a maior diferença é que eles vendem "excelência" e "qualidade". Entretanto, pergunte a eles o que significa "qualidade"... eles vão te responder com um amontoado de preconceitos, jargões, estereótipos e outras justificativas dogmáticas pra defender sua posição no "mercado da excelência"...

PS: quem tiver interesse, veja os comentários dessa reportagem para entender melhor sobre o que estou
tratando.
A música "erudita" precisa existir por si só. Justificar sua existência apenas porque ela seria "melhor" do que outros tipos de prática musical é, em sua essência, decretar sua total irrelevância. E, naturalmente, o apoio financeiro vai se esvaindo diante disso.
 O que estou dizendo aqui é que precisamos refletir urgentemente sobre a posição social em que se encontra a música erudita hoje. Em um mundo que traz hoje questões sobre democracia, inclusão social, ampliação do acesso ao conhecimento e, principalmente, DIVERSIDADE CULTURAL, como é possível manter uma prática musical sob o argumento de que ela é simplesmente "melhor" ou de "qualidade"? Melhor pra quem? Para aqueles que já são beneficiados pelo sistema?

Eu sou músico "erudito". Porém, não faço parte do "mainstream" de concertos e tournées da música "erudita". E o argumento sempre defendido por aqueles "beneficiados", contra pessoas como eu, é a "qualidade" do seu trabalho. Então, questiono: esse conceito de "qualidade" não é utilizado apenas para manter as estruturas de poder e a seleção de quem "pode" ou "não pode" ter suas produções artísticas veiculadas?

Obviamente, para quem está no "sistema" isso soa como uma afronta. Assim como o Wesley Safadão não questiona o sistema midiático de convenções do Sertanejo Universitário que o mantém ganhando o seu dinheiro.

E a música erudita, meus amigos, não é diferente. Ela apenas vende "qualidade" - e um conceito de "qualidade" que não resiste a um simples questionamento. Basta fazer algumas perguntas que os "beneficiados" vem argumentar sobre o "desconhecimento" ou "incapacidade" de quem levanta esses questionamentos.

E eu, músico erudito, também faço parte desse hall de "ignorantes". Pois questiono o tempo todo essas valorações de "qualidade" que a música erudita usa pra se vender.

Novas perspectivas?

Sempre quando levanto questionamentos, gosto também de propor alguns direcionamentos que possam contribuir para a situação. Mesmo que não contribuam de fato, espero que a intenção seja interpretada como positiva.

O que tem feito os músicos da OSB nesse momento de "crise"?

Eles tem tocado em casamentos, eventos públicos e outros tipos de atuação em que os músicos tem historicamente desempenhado papel relevante. Trata-se de um fato importante aqui: esse é o campo de atuação da grande maioria dos músicos formados por nossas Universidades e que não tem um espaço em uma orquestra como a OSB. Sendo assim, trata-se de um momento para reconhecer que todas as atuações no campo da Música tem a mesma importância social, independentemente da "qualidade". Esse conceito, por sua vez, tende a se tornar irrelevante, principalmente em termos pedagógicos: cada músico tem sua história, seus desafios e sua superação. É cruel avaliar suas experiências através de um conceito estático e redutivista de "excelência", que tende a ignorar toda a sua trajetória musical e os desafios enfrentados nesse percurso.

Ao mesmo tempo, "descer do pedestal" permite que os músicos se aproximem da sociedade, e não tenham sua prática restrita apenas àquelas apresentações naquele ambiente restrito e elitista em que a música "erudita" consolidou: a sala de concerto. Há iniciativas muito interessantes nesse sentido, como o bar "Desconcertando", onde você pode ver quartetos de cordas tocando obras clássicas e românticas enquanto o público bate papo e toma uma cerveja. A música erudita precisa, mais do que nunca, desse tipo de espaço. Mas para isso, os músicos "eruditos" precisam colaborar e entender a importância desse tipo de iniciativa.

Por fim, toda crise é, de certa forma, uma oportunidade. E no caso da OSB, uma oportunidade para refletir sobre toda a sua trajetória. Isso sim é "qualidade".

Nenhum comentário:

Postar um comentário